Para a vida selvagem, as mudanças climáticas representam um desafio comparável ao «chefe final» que um protagonista enfrenta em um jogo de videogame: imponente, complexo e inescapável.

Esse inimigo formidável tem forçado a vida selvagem a alterar onde e como vive. O aumento das temperaturas gera um estresse tão significativo que, ao longo de várias gerações, as espécies são obrigadas a se adaptar e mudar.

Queríamos entender melhor como esse fenômeno está ocorrendo nas aves do Brasil, um país com uma das maiores diversidades de aves do mundo, incluindo regiões como a Amazônia, o Pantanal e a Mata Atlântica, que abrigam vastas populações de espécies diversas.

Vida selvagem que muda de forma

Quando falamos em mudança de forma, não estamos nos referindo a criaturas fantásticas como lobisomens. Estamos falando de modificações reais no tamanho do corpo e nos apêndices, como bicos, asas e membros.

Essas alterações permitem que os animais eliminem o excesso de calor de forma mais eficiente, aumentando a área de superfície para dissipá-lo – um princípio também utilizado por engenheiros no design de radiadores, por exemplo.

como as aves vêem o mundo em comparação com os seres humanos

Assim como os tubos de água quente em radiadores ajudam a dissipar o calor interno pela superfície, os bicos das aves possuem vasos sanguíneos que transferem o calor do corpo para o bico, onde ele é liberado para o ambiente.

Esse princípio sugere que os animais podem mudar a forma do corpo ao longo do tempo para se adaptar ao aquecimento global.

Estudo de aves brasileiras

Nos últimos três anos, pesquisadores da Universidade de São Paulo e da Universidade Federal do Mato Grosso publicaram estudos que mostram como mais de 100 espécies de aves brasileiras estão reagindo às mudanças climáticas.

Essas pesquisas se concentraram em espécies que habitam regiões como o Pantanal, a Floresta Amazônica e a Mata Atlântica. Espécies como o tucano-toco (Ramphastos toco), conhecido por seu grande bico, e o curió (Sporophila angolensis), têm apresentado mudanças significativas em suas características físicas.

Identificamos que, em resposta ao aumento das temperaturas, muitas aves têm desenvolvido corpos menores e bicos maiores ao longo do tempo. Essas mudanças são mais evidentes em regiões de temperaturas mais altas, como o norte do Brasil.

O que fizemos e o que descobrimos

Utilizamos dois conjuntos de dados e métodos distintos para detectar essas mudanças. O primeiro foi baseado em dados coletados por pesquisadores e cientistas cidadãos que monitoram aves brasileiras em reservas como o Parque Nacional do Jaú (Amazônia) e o Pantanal. Essas observações incluíram medições de comprimento de bico, tamanho da asa e massa corporal em milhares de aves ao longo das últimas décadas.

Por exemplo, espécies icônicas como a arara-azul-grande (Anodorhynchus hyacinthinus) e o jabiru (Jabiru mycteria) mostraram aumento no tamanho do bico nos últimos 50 anos.

O segundo conjunto de dados foi obtido através de digitalizações em 3D de espécimes armazenados em museus, como o Museu de Zoologia da USP, permitindo a análise detalhada da área de superfície do bico e outras medidas. Mais de 5.000 espécimes foram analisados, revelando padrões semelhantes de bicos maiores e corpos menores em uma grande variedade de aves, de tucanos a beija-flores.

Regiões e espécies afetadas

O Brasil, com sua diversidade de biomas, apresenta respostas variadas às mudanças climáticas. Enquanto aves da Amazônia e do Pantanal mostram adaptações mais rápidas, espécies da Mata Atlântica, como o saíra-sete-cores (Tangara seledon), enfrentam maiores desafios devido à fragmentação de seu habitat.

Como é o Tucano arco-íris (Ramphastos sulfuratus)

Essas observações indicam que o aquecimento global está remodelando a fauna brasileira, mas também levanta questões importantes sobre a capacidade de adaptação das espécies em longo prazo.

Clima de curto prazo versus tendências de longo prazo

Um aspecto surpreendente refletido em ambos os estudos é que períodos de curto prazo de calor extremo podem causar respostas nas formas das aves que contradizem as tendências de longo prazo.

Embora o tamanho do corpo diminua em resposta a períodos curtos de temperaturas mais altas, o tamanho do bico também diminui. Por que isso ocorre, já que em longo prazo os bicos tendem a aumentar devido ao aquecimento global?

O aquecimento global não afeta apenas a temperatura, mas também o ambiente das aves. Em regiões com temperaturas extremamente altas, como o Cerrado e partes do Pantanal, períodos de calor intenso podem resultar em menor disponibilidade de alimentos. Isso afeta negativamente o crescimento de aves jovens, resultando em corpos e bicos menores.

Além disso, em períodos curtos de calor extremo, um bico grande pode se tornar um risco. O ar quente do ambiente pode aquecer o bico, elevando a temperatura corporal da ave, o que pode ser fatal.

Essas respostas contrastantes entre curto e longo prazo mostram que a adaptação em um clima em mudança é complexa e varia entre espécies e condições.

Uma questão de sobrevivência

Pode ser tentador interpretar o encolhimento e as mudanças de forma como sinais de que as aves estão se adaptando com sucesso às mudanças climáticas. No entanto, isso seria precipitado. Essas mudanças mostram que algumas espécies estão respondendo, mas não sabemos se isso melhora suas chances de sobrevivência a longo prazo.

Perguntas cruciais ainda precisam ser respondidas: essas adaptações garantem a sobrevivência ou apenas atrasam os efeitos negativos? Além disso, por que algumas espécies mostram mudanças claras enquanto outras permanecem inalteradas? Essas diferenças indicam que algumas espécies não precisam se adaptar ou que não são capazes de fazê-lo?

Após a última COP29, realizada em novembro no Azerbaijão, ficou claro que a discussão sobre o impacto das mudanças climáticas na fauna deve ser uma prioridade global. Estudos como os realizados no Brasil são cruciais para entender e mitigar esses impactos.

 


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